Introdução
Você já ficou encarando a geladeira mesmo depois de ter comido “o suficiente”? Ou sentiu uma vontade de comer doces quando estava triste, cansado ou nervoso — mesmo sem fome de verdade? Se a resposta for sim, você não está sozinho. Muitas pessoas acreditam que fome é algo simples: ou você está com fome ou não. Mas a real é que existem duas (ou mais) faces da fome — a fome física, aquela causada por sinais fisiológicos de energia, e a fome emocional, que vem de impactos psicológicos como estresse, ansiedade ou tédio.
Quando essas duas formas se misturam, fica fácil ter fome o tempo todo, mesmo que o corpo “já tenha o que precisa”. E isso pode sabotar qualquer tentativa de emagrecimento sustentável, porque você acaba comendo motivado por emoções, não só por necessidade energética. Neste artigo, vamos destrinchar o que a ciência diz sobre essas duas fomes, como elas funcionam no seu corpo e no seu cérebro, e — o mais importante — como lidar com isso de forma realista.
Como funcionam os sinais fisiológicos da fome (a “fome física”)
Hormônios centrais: grelina, leptina e outros
A fome física é regulada por um sistema hormonal bastante sofisticado. Dois hormônios se destacam:
- Grelina: chamada de “hormônio da fome”. É produzida principalmente no estômago e dispara quando o estômago está vazio. A grelina envia sinais para o hipotálamo (região do cérebro que regula o apetite), estimulando a vontade de comer.
- Leptina: produzida pelas células de gordura (tecido adiposo), sinaliza para o cérebro que há energia armazenada suficiente, ajudando a reduzir o apetite.
Quando esses hormônios funcionam bem, eles criam um equilíbrio: a grelina sobe antes das refeições para te avisar que é hora de comer; a leptina sobe depois para ajudar a dizer “já basta”. Mas esse sistema pode se desregular — especialmente em pessoas com sobrepeso ou obesidade — devido à resistência à leptina, uma condição em que o corpo “não ouve” bem o sinal de saciedade.
Além desses, há outros mensageiros hormonais como o peptídeo YY (PYY) e CCK, que ajudam a “desligar” a fome após comer.
Outros fatores fisiológicos que mantêm a fome acesa
- Insulina: além de regular a glicose no sangue, a insulina também influencia o apetite. Quando há resistência à insulina, o mecanismo de saciedade pode falhar, e a fome fica mais frequente.
- Hormônio do crescimento (GH): estudos da USP com camundongos mostraram que o GH interage com a grelina para aumentar o apetite.
- Cortisol: o hormônio do estresse. Quando o corpo está sob estresse crônico, o cortisol pode aumentar e influenciar tanto a grelina quanto os desejos por comida, promovendo a “fome emocional” (ou misturada).
A fome emocional: por que comemos quando não estamos “fisicamente famintos”
O que é fome emocional?
A fome emocional não vem de um sinal fisiológico de energia “precisando ser reposto”, mas sim de uma resposta psicológica ou emocional. Situações como ansiedade, tristeza, tédio ou frustração podem ativar hábitos de comer como uma forma de conforto, distração ou escape. O cérebro associa comida prazerosa (especialmente a rica em açúcar, gordura ou sal) como recompensa ou alívio emocional.
A neurobiologia da recompensa alimentar
- A grelina não age apenas como mensageira da fome física: estudos mostram que ela também estimula os circuitos de recompensa no cérebro (mesolímbico), aumentando a motivação por alimentos altamente palatáveis.
- Por outro lado, a leptina, que deveria sinalizar saciedade, pode se tornar menos eficaz quando há resistência — e isso pode prejudicar a regulação emocional da alimentação.
- Além disso, em situações de estresse crônico, o cortisol elevado está associado ao aumento dos desejos por comidas reconfortantes, o que reforça o ciclo da fome emocional. Um estudo prospectivo com 339 adultos mostrou que níveis mais altos de cortisol previram aumento do “food craving” (desejo por comida) seis meses depois.
A “dependência” emocional da comida
Algumas pessoas desenvolvem padrões similares à dependência com a comida. Em um estudo recente, níveis de leptina se correlacionaram com parâmetros de “vício alimentar” em homens, segundo uma ferramenta chamada YFAS (Yale Food Addiction Scale). Isso sugere que, para algumas pessoas, a comida reconfortante ativa mecanismos no corpo semelhantes aos de substâncias viciantes — em parte por falhas na regulação da saciedade.
Por que a fome física e a emocional se combinam e amplificam o problema
Fome dupla = ciclo difícil de quebrar
Quando a fome física e a emocional se misturam, fica muito mais complicado distinguir o que é “realmente necessário comer” e o que é conforto. Isso pode levar a:
- Comer mais vezes: porque a grelina dispara sinais de fome, mesmo que parte da motivação seja emocional.
- Escolha de alimentos altamente palatáveis: sob estresse, os alimentos ricos em açúcar e gordura são mais atraentes para o sistema de recompensa.
- Regulação hormonal alterada: a exposição contínua a altos níveis de cortisol, grelina e resistência à leptina pode criar um ambiente interno onde o corpo “espera” comer frequentemente.
A influência do histórico de dietas
Dietas restritivas muitas vezes aumentam a fome fisiológica (aumentam grelina) e a fome emocional, porque restringir calorias pode ser estressante e alterar os sinais hormonais. Além disso, quando uma dieta é “quebrada”, muitas pessoas comem em resposta ao estresse emocional causado pela restrição, entrando em ciclos de reganho de peso.
Estratégias práticas para lidar com a fome constante
Agora que você entende os mecanismos, aqui estão estratégias baseadas em evidência para gerenciar tanto a fome física quanto a emocional — de forma realista e sustentável.
1. Regule seus hormônios por meio da alimentação
- Proteína: aumente a ingestão de proteínas magras. A proteína reduz a grelina mais do que carboidratos ou gordura.
- Fibras: alimentos ricos em fibra (legumes, frutas, grãos integrais) ajudam a dar volume nas refeições e aumentam a saciedade.
- Gorduras saudáveis: inclua fontes como abacate, castanhas e azeite, mas com moderação — porque até gordura saudável é densa em calorias.
2. Cuide do sono e do estresse
- Dormir mal desregula leptina e grelina, aumentando a fome. Uma boa rotina de sono (7–9 horas por noite) ajuda a manter os níveis hormonais mais estáveis.
- Pratique técnicas de redução de estresse: meditação, respiração profunda, journaling ou caminhadas podem reduzir o cortisol e, consequentemente, os desejos emocionais.
3. Desenvolva consciência emocional sobre a comida
- Diário alimentar: anotar o que você come, mas também como se sentia no momento (“faminto?”, “triste?”, “estressado?”) ajuda a identificar padrões entre emoção e fome.
- Comer com atenção plena (mindful eating): desacelere, mastigue devagar, preste atenção aos sinais de saciedade do corpo. Isso pode reduzir episódios em que você come para “encher um vazio emocional”.
- Substituição saudável: quando sentir vontade de comer por emoção, experimente primeiro uma atividade alternativa — uma caminhada, um telefonema, escrever algo. Se a vontade persistir após alguns minutos, pode haver fome verdadeira, e aí sim comer.
4. Estabeleça estratégias de suporte social e psicológico
- Conversar com amigos, familiares ou terapeuta sobre suas emoções pode ajudar a aliviar a carga que leva à fome emocional.
- Grupos de apoio ou comunidades de pessoas que também lidam com “emotional eating” podem trazer estratégias práticas e empatia.
- Se o comer emocional estiver forte, considerar ajuda profissional (psicólogo, nutricionista) para trabalhar no gatilho emocional subjacente.
5. Use o balanço energético como aliado, não como vilão
- Entenda que fome física existe por uma razão: seu corpo precisa de energia.
- Não demonize a comida: permitir-se comer alimentos prazerosos com moderação ajuda a evitar restrições que disparam o ciclo da fome emocional.
- Monitore seus sinais de fome ao longo do dia, mas sem obsessão — a meta não é eliminar totalmente a fome, mas reconhecê-la e responder de forma consciente.
Exemplos práticos: cenários comuns e como reagir
- Depois de um dia estressante no trabalho
Você chega em casa, ansioso, e automaticamente procura algo para comer — geralmente algo doce ou ultraprocessado.
Estratégia: antes de comer, pare por 5 minutos, respire profundamente (técnica 4-7-8), beba água e pergunte a si mesmo se está com fome física ou sentindo alguma emoção forte. Se ainda quiser comer, escolha algo nutritivo e saciante (ex: iogurte + frutas + castanhas). - Manhã com fome intensa, mesmo após jantar bem
Você acorda com aquele “buraco no estômago”, como se nada tivesse sido suficiente.
Estratégia: comece o dia com proteína + fibras (ex: omelete com vegetais + aveia), evite pular o café da manhã, e avalie sua qualidade de sono. - Comer por tédio ou enquanto assiste série
Você abre um saco de pipoca “só um pouquinho” e acaba comendo tudo.
Estratégia: antes de começar, use um prato pequeno, controle a porção; defina uma regra tipo “somente quando realmente com fome ou após escrever no diário um sentimento que esteja sentindo”.
Conclusão
Sentir fome o tempo todo nem sempre é sinal de que você “comeu errado” — muitas vezes, há uma combinação complexa entre os sinais fisiológicos do corpo e os sinais emocionais da sua mente. A grelina, a leptina, o cortisol e outros mensageiros hormonais estão constantemente influenciando suas vontades e necessidades. Quando ignoramos essa interseção entre fome física e emocional, é fácil cair em ciclos de comer sem controle.
Mas há esperança: ao compreender como esses processos funcionam, você pode desenvolver estratégias reais para responder à fome de forma consciente. Ajustar seu sono, reduzir o estresse, prestar atenção às emoções e equilibrar a alimentação são passos concretos para retomar o controle.
Se você está cansado de dietas que não funcionam porque só tratam “o que você come”, comece a ouvir por que você está sentindo fome. E se quiser continuar aprendendo, explore mais no blog Emagrecendo com Ciência:
- Dificuldade em perder peso — e como driblar isso
- Metabolismo lento existe mesmo? O que a ciência diz sobre isso
Você não precisa lutar sozinho — entender o seu corpo é o primeiro passo para uma mudança real e duradoura.
Referências bibliográficas
- Stress, cortisol, and other appetite-related hormones: Prospective prediction of 6-month changes in food cravings and weight. PubMed / PMC. PMC
- The role of leptin and ghrelin in the regulation of appetite in obesity. PubMed. PubMed
- Endocrine controls of eating: CCK, leptin, and ghrelin. PubMed. PubMed
- Grelina: o hormônio da fome. WebMD (função da grelina). WebMD
- Leptina, saciedade e apetite. Instituto Bratan. policlinicaneurocor.com.br
- Estudo da USP: hormônio do crescimento estimula apetite via grelina. Jornal da USP. Jornal da USP
- Controle neuroendócrino do peso corporal e apetite. AGB Bauru – Alimentando Brasil. AGB Bauru



Respostas de 2